Por Agenor Garcia* e Bruce Rowse**
Este artigo pretende discutir em maior profundidade alguns conceitos sobre fronteiras de medição e como isso afeta o estabelecimento das condições de uso corretas - variáveis independentes, fatores estáticos e efeitos interativos em um projeto de M&V.Começamos revendo as definições do PIMVP (edição dos “Conceitos Básicos” de 2016) que, se não corretamente entendidas, podem levar a diversos problemas. Citamos um caso com a Opção C em um edifício e o exemplo utilizado no curso CMVP para a Opção B – troca de chiller. Para responder à pergunta “o que são, na verdade, as fronteiras de medição?”, examinamos mais dois exemplos, com várias opções de M&V – troca de chiller em um centro comercial e troca de caldeira em instalação industrial.
A partir das conclusões dos exemplos citados, procuramos “modelar” o estabelecimento da fronteira de medição em um projeto de M&V, citando vários exemplos de vários usos finais. Para finalizar, examinamos um interessante caso de instalação de trocador de calor em forno industrial, reforçando os conceitos anteriormente discutidos.
2. O que diz o PIMVP
O Capítulo 3 dos “Conceitos Básicos do PIMVP”, edição de 2016, define a fronteira de medição como uma “fronteira imaginária desenhada em torno de equipamentos, sistemas ou instalações para segregar aqueles que são relevantes na determinação da economia de energia daqueles que não o são”. Entende-se que a fronteira é como uma fronteira geográfica, separando os equipamentos que interferem na ação de eficiência energética (AEE ) dos que não o fazem. Das definições de ajustes de rotina (“cálculo de engenharia feito individualmente para levar em conta as mudanças esperadas no consumo de energia ou demanda devidas a mudanças nas variáveis independentes dentro da fronteira de medição”) e fator estático (“característica de uma instalação que afeta o consumo de energia e demanda, dentro da fronteira de medição definida, porém esperada que não se altere e, portanto, não incluída como variável independente”) conclui-se que ambas as condições de funcionamento, variáveis independentes e fatores estáticos, devem ser consideradas somente dentro da fronteira de medição. Por outro lado, os efeitos interativos (“impactos energéticos gerados por uma ação de eficiência energética que não podem ser medidos dentro da fronteira de medição definida”) são resultados da AEE que “vazam” pela fronteira, ou seja, afetam outros sistemas energéticos fora da fronteira.
O Capítulo 5.1 do PIMVP, que fala sobre fronteira de medição, aborda unicamente o lado da energia, separando os casos de medição isolada – Opções A e B dos casos de toda a instalação – Opção C. A Opção D, usada nos casos onde dados de medição não são suficientes e em que uma simulação de engenharia é utilizada, pode ser usada tanto como uma medição isolada quanto de toda a instalação.
Nada se fala sobre a medição das variáveis independentes que, na verdade, forma o “outro lado” da fronteira, pela medição de fatores relacionados aos serviços da energia. As edições anteriores do protocolo colocavam o medidor como demarcador da fronteira de medição, o que não é mais mencionado (porém continua sendo verdadeiro).
Algumas más interpretações podem advir desta conceituação muito genérica. É preciso aprofundar os conceitos de fronteira de medição para se poder fazer os ajustes corretos na comparação dos dois consumos de energia dos períodos da linha de base e determinação da economia .
3. Exemplos de problemas e solução
O primeiro caso é o da Opção C. Como a fronteira engloba toda a instalação, poder-se-ia concluir que não há efeito interativo, porque esses somente se manifestam fora da fronteira. No entanto, se tivermos, por exemplo, uma AEE múltipla no sistema elétrico de um edifício, incluindo reforma da iluminação, e se o condicionamento ambiental do edifício no inverno for feito por aquecedores a gás, haverá um efeito interativo com um maior consumo de gás devido à perda de carga térmica em lâmpadas e reatores. Este efeito não é medido pelo medidor de energia elétrica, visto acontecer no sistema de gás. Onde está o erro?
Figura 1 – Fronteira de Medição para troca de chiller
Outro problema desta definição imprecisa pode ser visto no exemplo do Módulo 7 – Detalhes da Opção Isolada do curso de CMVP (ver a Figura 1). Neste exemplo da Opção B, considera-se a troca de um chiller. Mede-se a eletricidade aportada ao motor do chiller e a carga térmica da água gelada, definindo-se corretamente a fronteira com os dois limites – da energia e da variável independente. A torre de resfriamento é mostrada fora da fronteira, já que seus parâmetros – temperaturas e vazão de água – não são alterados. No entanto, o slide 18 do mesmo módulo diz que: “ao menos anualmente, revisar os fatores estáticos para se assegurar que a linha de base continua apropriada (por exemplo, dificuldades na torre de resfriamento podem aumentar a temperatura média de condensação)”.
Mas, a torre não estava fora da fronteira? Os fatores estáticos não têm que estar obrigatoriamente dentro da fronteira? Como resolver estes problemas?
Na verdade, em eficiência energética estamos lidando com conversão de energia e como melhorar esta conversão, então devemos pensar em fluxos de energia. Então temos dois limites: um, do lado da entrada de energia, marcado pelo medidor da energia (tanto para medições isoladas, como para toda a instalação) e outro, do lado da saída do sistema, os serviços de energia, marcado pelos medidores das variáveis independentes. Todos os equipamentos e sistemas atravessados por este fluxo de energia estão dentro da fronteira de medição e o restante está fora. Ou seja, devemos pensar na fronteira de medição não como uma fronteira geográfica, como a fronteira de um sítio ou de um país, mas numa fronteira do fluxo de energia que faz a conversão que estamos medindo. Vamos aos casos práticos:
No exemplo da Opção C, o calor de lâmpadas e reatores sai da fronteira de medição porque não é visto nem pelo medidor de eletricidade, nem pelos medidores das variáveis independentes (por exemplo, temperatura ambiente e eventualmente ocupação). É realmente um efeito interativo, ou seja, um efeito da AEE que se manifesta em outro sistema energético fora da fronteira de medição porque a fronteira engloba somente o uso de eletricidade dos equipamentos.
No exemplo do chiller, a torre de resfriamento participa do processo de conversão de energia (de eletricidade em carga térmica da água gelada) porque sua eficiência no processo de refrigeração da água de condensação afeta o rendimento do chiller, já que afeta os estados por que passa o refrigerante. Por exemplo, uma perda na capacidade de refrigeração da torre vai prejudicar a condensação do refrigerante e o funcionamento do chiller. O que está fora da fronteira de medição é a energia gasta pela torre, nos ventiladores e bombas de água de condensação, já que está se medindo somente a eletricidade aportada ao motor do chiller.
Pensando-se em termos de fluxo de energia e os caminhos que ela percorre para a sua transformação, temos a consideração adequada da fronteira, ou seja, das variáveis independentes, fatores estáticos e efeitos interativos.
No capítulo seguinte, veremos mais detalhadamente alguns outros exemplos.
4 Outros exemplos
4.1 Chiller em shopping
Figura 2 – Abordagem 1: Toda a Instalação
Retomemos o caso de troca de chiller, agora em uma instalação específica – um shopping. Como o ar condicionado representa o grande consumo de eletricidade e sua troca tem um bom ganho, uma opção para a M&V pode ser usar o próprio medidor de entrada do shopping (que alimenta as partes comuns). Vamos supor que as variáveis independentes são a temperatura externa (medidas em graus-dia por meio de dados de uma estação meteorológica próxima) e a ocupação do shopping (em pessoas-dia, controladas pelo próprio shopping). As medições se fazem junto com a distribuidora de energia elétrica, mensalmente. A fronteira de medição, neste caso, tem um lado definido pelo medidor de energia da distribuidora e outro por toda a instalação, já que qualquer alteração na estrutura do shopping (acréscimo de lojas, mudança de uso nas lojas, etc.) reflete-se em aumento da carga térmica e consumo do chiller.
Nesta configuração, tudo o que ocorre no interior do shopping e afeta o consumo de energia visto pelo medidor geral, fora a temperatura externa e a ocupação, é fator estático. Por exemplo, o sistema de iluminação das partes comuns (assim como escadas rolantes, elevadores, bombas d’água, etc.) é um fator estático e, em caso de alteração, necessita um ajuste da linha de base (ALB). Qualquer modificação em alguma loja altera a carga térmica para o condicionamento de ar e também necessita um ALB. É necessário, portanto, o acompanhamento constante de tudo o que ocorre com o sistema elétrico das partes comuns do shopping e a carga térmica do condicionamento de ar (o que pode ser um problema). Uma grande vantagem desta opção é que provavelmente a linha de base (por exemplo, os 12 últimos consumos de eletricidade, temperatura e ocupação) já estará pronta.
Figura 3 – Abordagem 2: isolação da AEE
Se está prevista uma grande quantidade de ALBs, uma solução pode ser colocar um medidor de eletricidade específico para o motor do chiller e usar as Opções A ou B. As variáveis independentes continuam sendo a temperatura externa e a ocupação, porque afetam de maneira decisiva o consumo do chiller. A diferença é que o sistema elétrico das partes comuns não é mais um fator estático, porque afeta o medidor geral, mas não o medidor do chiller. A grande desvantagem é que, se o medidor for instalado por causa da AEE, tem-se que medir todo o período da linha de base. O PIMVP pede que se meça durante um ciclo completo das condições de uso, ou seja, varrendo todo o espectro da temperatura ambiente e da ocupação, o que pode levar um tempo grande.
As modificações que são fatores estáticos referem-se somente à mudança de carga térmica para o sistema de ar condicionado, e não no sistema elétrico (a menos que afetem a carga térmica). Esta abordagem é considerada uma Opção B pelo PIMVP (ou A, dependendo de como sejam medidos ou estimados os parâmetros do cálculo da economia de energia).
Figura 4 – Abordagem 3: Medição da carga térmica
Se os fatores estáticos continuam complicados de se acompanhar (exigindo muitos ALBs), pode-se medir uma variável intermediária para o serviço da energia, ou seja, a carga térmica da água gelada.
A variável independente agora é a própria carga térmica. Medições diárias ou horárias também podem ser indicadas. As variações da temperatura externa e ocupação vão se refletir na carga térmica e, portanto, não necessitam mais atenção.
Também mudanças na estrutura do shopping refletem-se na carga térmica da água gelada e não representam assim mudança de fator estático. Esta solução é bastante interessante como medição da AEE propriamente dita, porém tem um alto custo de medição e não correlaciona o consumo com as condições de uso do shopping percebidas pelo dono da instalação. Também há que se medir a linha de base antes de executar a AEE. Esta também é uma Opção B (ou A) do PIMVP, já que o que define a Opção é somente a medição da energia na entrada do sistema.
Assim, podemos sintetizar as vantagens e desvantagens das várias opções na Tabela 1.
Tabela 1 – Vantagens e desvantagens das 3 abordagens de M&V
A abordagem 1 tem um baixo custo de medição, mas fica muito sujeita ao que acontece com os fatores estáticos. Outra vantagem é que a variação da economia depende diretamente de variáveis percebidas pelo dono da instalação: temperatura e ocupação.
A abordagem 2 é um meio termo entre uma fronteira abrangente, ligada ao uso do shopping, e outra estreita, ligada ao desempenho do chiller. A medição de energia é ligada ao chiller e a medição das variáveis independentes ligada às características do shopping.
A opção 3 é bem focada no desempenho do equipamento. Com medidores instalados, pode ser usada para acompanhar e otimizar o desempenho do chiller por meio de, por exemplo, técnicas de MT&R (Monitoring, Targeting and Reporting), utilizando-se a técnica CUSUM (cumulative sum). Tem um custo de medição elevado, porém não exige o acompanhamento da instalação, o que pode ser uma vantagem em ambientes sem uma regularidade operacional.
4.2 Caldeira
Figura 5 – AEE em caldeira
Vamos examinar um exemplo de M&V onde a AEE é a troca ou um melhoramento em uma caldeira a gás que fornece vapor a uma indústria, que pode ser de bebidas, por exemplo. O gás é utilizado, além da alimentação da caldeira, em alguns fornos auxiliares da produção. Uma parte do condensado é reaproveitada.
A primeira abordagem para a M&V seria a utilização das medições da companhia de gás, provavelmente correlacionada com a produção fabril, que explicaria a maior parte da variação do consumo de gás. Aqui teríamos uma fronteira bem abrangente, tanto na entrada da energia, quanto nos serviços da energia, que englobaria toda a fábrica. Os fornos seriam fatores estáticos, porque alteram o consumo de gás, além do sistema de vapor. Esta opção é interessante porque a linha de base já está pronta, não usa medição adicional e correlaciona o consumo de gás com variável significativa para o dono da instalação.
Figura 6 – Abordagem 2 para o caso da caldeira
Caso o uso dos fornos não tenha regularidade, exigindo muitos ALBs, pode-se instalar um medidor exclusivo para a caldeira, ainda correlacionando o consumo com a produção, provavelmente. Aqui a linha de base deve ser medida, em pontos representativos da variação da produção para se ter um bom modelo. Uma vez estabelecida a linha de base e implementada a AEE, a Opção B é a mais indicada porque vai permitir também um acompanhamento e otimização do desempenho da caldeira. Agora os fornos não são mais fatores estáticos, porque não influem no medidor da caldeira e estão fora da fronteira de medição. O sistema de vapor continua a ser um fator estático – mudanças na isolação das linhas de vapor, purgadores, aproveitamento de condensado podem mudar a relação vapor/produção e, portanto, merecem ajustes da linha de base.
Figura 7 – Abordagem 3 para a caldeira
A terceira opção seria medir o vapor (além do gás da caldeira). A fronteira fica restrita ao equipamento e tudo o que acontece na fábrica e muda o uso do vapor já vai ser detectado no medidor de vapor. A produção não é mais uma variável independente e os fornos não são mais fatores estáticos. O sistema de vapor só é fator estático se afetar o sistema de reaproveitamento de condensado. Por exemplo, se no período da linha de base não houvesse reaproveitamento de condensado e isso fosse instalado no período de determinação da economia, haveria uma economia adicional pelo reaproveitamento e não pela melhoria da eficiência da caldeira e um ALB deveria ser feito. Aqui fica claro o conceito de fluxo de energia para definição da fronteira de medição – o reaproveitamento de condensado está dentro da fronteira porque afeta o rendimento da caldeira. É uma opção bastante interessante para o acompanhamento e otimização do desempenho da caldeira, porém tem custo de medição elevado.
[FIM DE PARTE 1]
Referências
EVO – Efficiency Valuation Organization. Protocolo Internacional de Medição e Verificação de Performance: Conceitos Básicos. Sofia: EVO, 2016.
GERBI – Redução da Emissão de Gases de Efeito Estufa na Indústria Brasileira. Caso de Estudo de M&V: Recuperador de Calor em Forno. Apresentações em Power Point. Problema inicialmente sugerido por John Cowan. Rio de Janeiro: GERBI, 2003.
(*) Agenor Garcia is an energy efficiency and M&V consultant based in Brazil, technical director of CTC Experts. Agenor is a member of EVO's Extended Training Committee and an EVO L3 accredited instructor.
(**) Bruce Rowse is a consultant with 8020Green and is based in Australia. Bruce is the chairman of EVO's Extended Training Committee and an EVO L3 accredited instructor.